Igreja da Misericórdia

 

O TEMPLO da MISERICÓRDIA

A Igreja barroca da Misericórdia conseguiu na sua variante joanina, que mais não é do que uma forma de decoração rócócó, furtar-se à inquietação e ao peso tradicional das fachadas desta arte.

A pureza, a elegância e a harmonia das proporções desta fachada marcam as suas principais características.

A Misericórdia da Guarda serviu de exemplo a algumas réplicas modestas na região.

Adorna a fachada da Misericórdia um frontão com arquitrave, friso e cornija, encimado por um cruzeiro. O frontão é ladeado por duas torres sineiras, rematadas por cúpulas piramidais, sobrepostas, de base quadrangular, sobre as quais assentam duas cruzes-catavento em ferro.

Os muros da fachada e das torres caiados, ao gosto do séc. XVIII, com excepção dos cunhais e dos elementos decorativos, que sobressaiam em relevo, mostrando a cantaria.

O portal é ladeado por pilastras quadrangulares, encimadas por capiteis com um misto de coríntio e jónico num arranjo compósito. Sobre estes, levanta-se um frontão partido, onde assenta, como fecho, um arco conopial.

A porta de entrada é de arco abatido e sobre este destaca-se o escudo com as armas de D. João V. Na fachada há ainda duas janelas de avental e uma hornacina ou baldaquino exterior, assente sobre duas colunas, onde se vê uma escultura, em jaspe, da Virgem da Misericórdia.

Nas torres sineiras existem janelas e postigos de avental e óculos.

As ventanas são de arco de volta inteira. Os cubelos das torres, no remate das cúpulas, são encimados por uma galeria com balaústres. Nos cantos vêem-se fogaréus. O interior desta igreja é monovánico, com cobertura de madeira (meio canhão). O coro assenta sobre um arco abatido, muito bem calculado, longo e elegante. Os altares e púlpitos são barrocos. As galerias laterais, em que se prolonga o coro, fazem-nos pensar numa influência jesuíta. Na parte exterior da capela-mor há um cruzeiro ladeado por dois fogaréus.

 A concepção deste templo é genuinamente barroca e pode considerar-se como um dos mais belos monumentos da época de D. João V.

Desconhecemos o autor do projecto.

Esta Igreja influenciou a construção de vários templos barrocos da diocese, especialmente as igrejas da Mesquitela e da Carrapichana (Celorico da Beira).

Problemas relacionados com a Igreja da Misericórdia

Na capela-mor, do lado do Evangelho, existe um túmulo, cuja tampa é uma tosca estátua jacente em granito, uma mescla de gótico tardio e renascimento, mais parecendo um produto da arte popular.

Neste túmulo, há uma inscrição que diz:

Sob esta capela jaz a ossada do fundador desta igreja Simão Antunes de Pina, 5 d(e) D(ezembro) 1611. Esta data não corresponde ao falecimento, que ocorreu em 1594, mas à trasladação.

Concluímos que a igreja da Misericórdia foi reconstruída no tempo de D. João V. De facto. A fachada e os altares são do séc. XVIII, correspondendo ao reinado do Magnânimo.

No pavimento interior aparecem tampas de sepultura com datas de 1615, 1632, 1641, 1672, etc. Algumas foram removidas dos respectivos lugares, pois as inscrições estão voltadas para a porta principal em lugar de estarem orientadas para o altar-mor, isto é, para onde ficava a cabeça do cadáver.

Carlos Manuel que tratou este assunto brilhantemente, esclarece-nos de que a Capela da Misericórdia custou oito mil cruzados e era de estilo jesuítico. Mais tarde, no séc. XVIII, fez-se a capela de estilo joanino. Carlos Manuel aventa a hipótese, aliás acertada, de ser uma reconstrução. A principal fonte para o estudo das obras de Simão de Pina é o chamado “Livro da Correia”, um velho manuscrito, espécie de tombo da Misericórdia.

Por ele sabemos que a Igreja da Senhora dos Remédios junto da Guarda, foi mandada edificar por Simão de Pina. (…)

Carlos Manuel reforça a hipótese de uma reconstrução na Igreja da Misericórdia, baseado nos edifícios anexos desta igreja, como o chamado hospital velho, em estilo filipino. Pensamos procurar origens mais remotas para a edificação da Capela de Simão de Pina.

Esta ergueu-se num terreno já anteriormente consagrado ao culto, isto é, aquele onde D. Sancho II edificou, sob o patrocínio de Nossa Senhora da Consolação, a segunda Catedral, que D. Fernando mandou arrasar por ficar fora da cerca e servir as tropas castelhanas, como ponto estratégico.

Além dos testemunhos que nos apresenta Gama e Castro reunidos na sua obra, temos ainda um elemento importante ligado à igreja da Misericórdia e transportado para o Museu Regional da Guarda. Refiro-me à imagem românica de Nossa Senhora da Consolação, em granito. Foi sobre a invocação da Virgem da Consolação que D. Sancho II erigiu a Catedral extra--muros. A imagem manteve-se no mesmo local apesar dos continuados restauros e reconstruções que sofreu, até ser transferida para o Museu Regional.

No adro da igreja da Misericórdia havia, no séc. XIX, um cemitério. Ali foram sepultados catorze espanhóis fuzilados por ordem do general Rodil, em 1834, quando em perseguição do Rei D. Carlos de Bourbon, entrou na Guarda e os prendeu. O Rei fugiu. Em 1956 quando se fez o alargamento da estrada em frente desta igreja, apareceram botões espanhóis e moedas da época, objectos que foram adquiridos dos operários, que ali trabalhavam, pelo Sr. António Valentim Dias, então Comandante dos B.V., que me facilitou o exame das peças. As moedas eram de cobre, bem como os botões.

Anexa à Igreja da Misericórdia funcionava o Hospital, de que ainda é visível a fachada exterior do séc. XVIII, o pátio interior e um corpo mais antigo do século XVII. Tinha botica, que se manteve através da actual farmácia.

Rodrigues, Adriano Vasco. Guarda: Pré-História, História, Arte (Monografia). Guarda: Edição Santa Casa da Misericórdia, 2000.p.345-352